
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Um tronco oco de árvore morta no alto de um morro. Os macacos se aproximam e batem com as patas traseiras e pedras contra o tronco e se divertem com o som produzido. Qual seria a razão para esse comportamento bizarro que não parece ligado às necessidades básicas de sobrevivência ou reprodução?
Ele dá uma risada e diz “eles fazem música, se deleitam em produzir sons. Fazem o que eu faço. É simples. É simples assim. A humanidade é simples assim.”
O salmão desafia a morte subindo o rio contra a correnteza para se reproduzir, os patos selvagens voam para o sul no inverno, algumas espécies de baleias procuram cemitérios gelados para um suspiro final. Talvez um instinto tão básico e primitivo também esteja presente na inquietação que move o contador de histórias para o seu ofício. Em algum ponto da vida, o mesmo sopro nos move a todos para alguma direção.
O contador de histórias tem suas crenças. Tem suas percepções construídas ao longo do tempo. Ele é um observador do cotidiano humano. Cotidiano que vê com misto de compaixão, cumplicidade e curiosidade. Destila tudo o que se passa por sua retina. Traduz sua visão em verbo e com aquele outro pau oco -- aquele com seis cordas, sete notas e lógica própria -- completa o processo que o levará a reverberar o que vê.
Tive o meu dia quando pude conversar com meu contador de histórias predileto. Poderia ter sido ao redor de uma fogueira, em outras eras, antes de dormir depois de uma longa caminhada em busca da caça, mas, no meu caso, pude falar com ele depois do ritual moderno regado a guitarras, luzes e decibéis. Aquele ritual onde revi e revivi tantas histórias cultuadas há mais de 20 anos. Histórias que sei de cor. Sobre amores, brigas, redenção, momentos de decisão, escolhas, o rumo dos ventos, tormentas oceânicas e o sabor das marés. Histórias contadas em inglês que dialogavam com minhas tenras inquietações, mesmo quando não compreendia o que diziam, que se tornaram ainda mais saborosas quando decifradas e, por fim, que tem outras tantas por trás de si que somente o autor em pessoa pode elucidar. Nesse meu dia, ele se dedicou a esse pequeno apêndice do seu ofício com imensas doses de paixão e generosidade. Essa generosidade, cortesia e paciência deixam todos ao redor num certo estado de graça. Uma generosidade que faz com que você olhe para os seus pertences e não encontre uma forma de lhe retribuir.
Conversei com um cara que tomou um choque no Japão, se sentiu em casa no Afeganistão, adorou o Brasil miscigenado, esteve morto por três infinitos minutos na Suíça, viajou em navios de frete da Inglaterra para o Canadá na temporada de furações e oceano indócil. Ele foi adulado, teve ticket carimbado para o estrelato, mas abriu mão. Continuou fiel à sua mensagem e ao público que dialoga com sua arte. Pulou fora da indústria de celebridades, egos gigantescos e do culto a personalidade.
Estive frente a frente com o inglês que em meados dos anos 70 observou o conflito armado na Irlanda do Norte do alto da montanha de Glenshane Pass, nos arredores de Belfast. Mais tarde, nos anos 80, ousou questionar em melodia e versos a campanha militar britânica para retomar as ilhas Falklands/Malvinas. Abraçou a crítica dura à guerra fria e suas instalações de mísseis nucleares por toda uma Europa até então não unida economicamente. Hoje, ele olha para a última crise financeira mundial e não titubeia “a máscara caiu, temos que dizer pra esses caras de Wall Street: vocês são uma fraude”.
A crise econômica se transforma no estopim para um novo álbum chamado “Today is a good day”, e com ele mais histórias. Então me pergunto: por que escutamos histórias? Isso é tão antigo quanto a humanidade. Estão na bíblia, estão nas inscrições rupestres, estão no cinema 3D, nos cordéis, nos livros, nas revistas e nos blogs. Nos entregamos às histórias para olharmos para um espelho que diz quem somos e o que somos. Histórias nos dão sabor, gosto, reflexão.
Tenho uma amiga aficionada por Grande Sertão: Veredas, tenho um amigo extasiado com os fluxos de consciência da Virginia Woolf, meu irmão ama os filmes do John Huston e venera a carreira de diretor do Clint Eastwood. Minha esposa tem sua alma lusitana dissecada pelos heterônimos de Fernando Pessoa e minhas sobrinhas adoram a saga do Harry Potter. Os bons contadores de histórias estão por aí, arrebanhando os mortais para suas mensagens e fantasias.
Minha formação roqueira de poucos LP’s e muitas fitas k7 trocadas com amigos do subúrbio me trouxe o New Model Army, uma banda punk ali nos anos 80. Banda que trazia no coração Justin Sullivan, o meu contador de histórias predileto. Banda que me deixaria desnorteado mais tarde com sua arrojada linguagem musical forjada a partir do álbum ‘No Rest for the Wicked’. Linguagem que incorporou música celta, cigana, folk, acordes abertos, complexas texturas em arranjos de cordas e uma gaita que corta a alma. Tudo permeado pelas guitarras nervosas e básicas do rock’n roll. Na minha humilde opinião, o New Moldel Army foi uma das poucas bandas que trouxe a fúria do punk para um estado de maturidade, tanto em texto quanto em música.
O tecladista Dean White definiu a complexidade de trabalhar essa enorme diversidade sonora: “tenho que ter no meu sampler as cordas de Wagner e a sujeira dos Stooges. What a fuck band is it?”. Pra mim, ‘the big one’.
O New Model Army comemora 30 anos de uma estrada permeada por glórias, perdas e cicatrizes de guerra. Justin Sullivan está feliz com os novos membros da banda. Ele gosta de olhar para o novo, para o que está no porvir, mas 30 anos de história não podem simplesmente ficar pra trás. O projeto para reverenciá-los o obrigou a rever a trajetória de sua longa amizade e colaboração com o falecido baterista Robert Heaton. Ninguém fica incólume ao lançar o olhar para uma relação tão especial.
“O New Model Army tem que trabalhar como uma família, como uma rede de confiança.” E quando essa máquina afina o seu trabalho, tudo é possível, e suas visões alçam vôos inimagináveis.
A passagem da turnê comemorativa pelo Brasil era obrigatória e talvez, por alguma razão, necessária. A banda trabalhou duro com seu staff para conseguir local e data.
Tive o privilégio de ter embarcado no mundo descortinado pela verve de Justin Sulivan e todos os colaboradores do New Model Army. Pude constatar a honestidade entre o que escrevem, o que cantam e o que são.
Caminho pela Rua Augusta, já numa manhã de domingo cinzenta e fria em São Paulo, e acho que posso dormir tranquilo e me apaziguar com meu cansaço depois da longa noite trocando experiências com os caras do New Model Army. O domingo foi passando e daqui a uma hora eles embarcam de volta para a Inglaterra. Daqui a uma hora meu relógio volta a contar o tempo.
Lá fora, no alto de algum morro, os macacos se divertem. Eu entendo os macacos.
Hélio Silva
Baixista da banda punk Condutores de Cadáver e ex-integrante das bandas Cólera (guitarra) e Estado de Coma (bateria). É profissional da área de tecnologia e fotógrafo amador (http://www.flickr.com/photos/heliosilva/).
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